Era
sábado. Dia de futebol com os amigos.
Levantou cedo. Preparou a bolsa. Tudo cuidadosamente bem dobrado.
Cada coisa no seu lugar. Tomou banho. Pendurou o roupão
azul atrás da porta. Guardou o chinelo no armário.
Fez café. Leu o jornal. Dia claro de sol. Sábado,
finalmente!
Márcio Roberto era metódico. Do tipo que vive
a cada minuto, comandado pelo seu “Palm”. Trabalhava
duro. Esperava o final de semana. Assim passavam os meses,
riscados na rotina do calendário na geladeira. A vida
seguia sem alterações. Ano após ano na
mesma função: um dos advogados de uma grande
firma de direito. Nunca conseguira a promoção
tão sonhada. Era estudioso e organizado, mas faltava-lhe
algo mais.
Precisamente às sete horas e cinqüenta minutos,
acordou Andréia, sua linda esposa. Ela, professora,
mantinha-se sempre em plena forma. Malhava horas a fio, todos
os dias. Um tipo de fuga. Uma maneira de suportar a situação
de não poder mais exercer sua profissão devido
aos ciúmes doentios do marido.
Na saída, beijou Andréia na testa, olhou para
o relógio, pegou a bolsa, as chaves penduradas e seguiu.
Ela, como de costume, o acompanhou até a porta. Nesse
instante, o celular de Andréia tocou sobre o balcão
da sala de jantar. Ele continuou a caminhar, ela atendeu.
Márcio ainda pode ouvi-la falar “alô”
várias vezes antes de entrar no elevador.
O juiz apitou o final do primeiro tempo. O calor estava forte.
- Este verão está de se matar! - gritou, enquanto
jogava água sobre a cabeça, como um chuveiro.
No intervalo, a conversa entre Márcio e Danilo, um
velho amigo de trabalho, girou em torno da demissão
de Paulo.
- Viu só! Finalmente nos livramos dele! - comemorou
Márcio.
- Realmente! Nos últimos meses o chefe o chamou várias
vezes. Na semana passada pegou as coisas da mesa e nunca mais
voltou - disse Danilo.
- Imagine a cara dele quando o chefe descobriu...
- Fique quieto! Esqueça que fizemos isso! Se alguém
descobre, nós é que seremos despedidos -interrompeu
Danilo, olhando preocupado a sua volta.
Paulo era um jovem advogado, extremamente competente e carismático.
Chegou na empresa há pouco tempo e rapidamente conquistou
a confiança de toda a diretoria. Márcio não
se conformava com o sucesso de Paulo. A inveja era, sem dúvida
nenhuma, um dos grandes defeitos de Márcio. A cada
elogio que ouvia sobre Paulo, ele se corroia todo por dentro.
Passava muitas horas do dia imaginando como atrapalhar a carreira
de Paulo. Isso muitas vezes o fazia ficar atrasado com o seu
próprio trabalho. Sua vida era amarga. Criticava qualquer
coisa sobre Paulo. Sentia-se melhor. Acabou esquecendo que
poderia ser mais feliz usando seu tempo em prol de si mesmo,
das suas próprias realizações.
- Mas quem se importa! O importante é que ele está
no olho da rua! - comemorou novamente Márcio.
Naquele instante, os dois notaram uma presença estranha
próxima do campo. Uma mulher, sozinha, chorando de
soluçar. Era a esposa de Paulo! Mas o que ela estaria
fazendo ali?
- Algum problema? - perguntou Márcio.
- Sim! Tudo errado! - desabafou a mulher em prantos.
- Onde está o Paulo? - perguntou Danilo.
- Não sei! Todos os sábados ele sai para jogar
futebol. Diz que vem aqui. Eu nunca desconfiei de nada, mas
de uns meses para cá ele anda muito estranho, distante.
Não quer nada comigo. Diz que está cansado e
me evita.
Márcio e Danilo sabiam que havia algo errado. Paulo
nunca esteve no futebol. Contudo, com pena, Danilo mentiu:
- Ele saiu mais cedo. Foi ao “shopping”. Não
se preocupe, é apenas uma fase ruim do casamento, logo
passa.
- Eu também pensei que fosse. Achei que era apenas
o stress com a promoção na empresa, pela responsabilidade
de assumir a chefia da nova filial. Mas, ontem à noite,
enquanto arrumava as roupas dele, eu achei, por acaso, a conta
do celular no bolso do paletó e.... - a mulher disparou
a chorar novamente.
Márcio olhou para Danilo em espanto. Ele não
foi despedido! Ele foi promovido! Tornou-se chefe de uma filial
inteira!
- E daí? O que havia na conta? - pergunta Márcio,
já com a inveja borbulhando no estômago.
- Tinha um número! Um número que se repetia
várias vezes. Muitos minutos de conversa na semana
e, infalivelmente, uma ligação curta no sábado,
exatamente às oito e quinze da manhã, justamente
no horário que ele deveria “começar o
futebol”... - disse a mulher trêmula, abrindo
a mão e mostrando um pequeno pedaço de papel
amassado com um número de celular anotado.
- Hoje de manhã, tomei fôlego e liguei para esse
número! Oito horas em ponto. Uma mulher atendeu. Fiquei
apavorada, sem saber o que fazer. Não tive coragem
de dizer nada. Desliguei. Ele tem outra! Ele tem uma amante!
- completou a mulher, chorando e colocando as mãos
sobre o rosto.
Márcio reconheceu o número e ficou calado. Sentiu
um frio na espinha. O coração batia forte. Raiva,
ciúmes, inveja, vontade de chorar....ódio! Enquanto
ele tramava na empresa, Paulo era promovido e ocupava, literalmente,
o lugar que era dele!
- Como sou burro! - pensou Márcio, saindo em disparada.
Ninguém entendeu nada. Ele não começou
o segundo tempo. Dirigia como louco pelas ruas. Não
via quase nada. Olhos confusos. Cabeça confusa.
- Maldito! Quanto tempo perdido! Burro! Burro!
O trânsito estava horrível. Olhava no relógio
a cada minuto.
- Hoje é sábado! Anda gente!
Tinha que chegar logo! Queria encontrar a prova. Uma prova!
Mas, o que faria ao chegar lá? Tudo muito confuso na
mente. Não conseguia raciocinar. Seus pensamentos estavam
mais embotados do que os olhos.
Mudou o caminho usual para evitar o tráfego. Notou
que o novo escritório da empresa, a filial que Paulo
agora chefiava, ficava a apenas algumas quadras do seu apartamento.
- Maldito! E eu que pensava que estava despedido! O que fiz
de errado! Meu Deus! O que foi que eu fiz? Burro! Burro!
Chegou! Deixou o carro na rua. Voou para o elevador. Entrou
no apartamento. Esqueceu a porta aberta, a chave jogada sobre
o sofá, seu roupão azul sobre a cama, o chinelo,
virado, ao lado do tapete. Chuveiro ligado. Andréia
tomando banho. Na secretária uma mensagem nova piscava.
Era o chefe, dizendo que ele estava despedido, pois descobrira
a falsificação dos documentos de um dos clientes
de Paulo. Na segunda eles conversariam.
Deixou-se cair pesadamente, suado, sobre a cama. Música
suave de piano, o vento na cortina da janela do décimo
andar. Faz calor. Esse verão está de se matar.
Marcos
Pontes
Colunista,
professor e primeiro astronauta profissional lusófono
a orbitar o planeta, de família humilde, começou
como eletricista aprendiz da RFFSA aos 14 anos, em Bauru (SP),
para se tornar oficial aviador da Força Aérea
Brasileira (FAB), piloto de caça, instrutor, líder
de esquadrilha, engenheiro aeronáutico formado pelo
Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA),
piloto de testes de aeronaves do Instituto de Aeronáutica
e Espaço (IAE), mestre em Engenharia de Sistemas graduado
pela Naval Postgraduate School (NPS USNAVY, Monterey - CA). |